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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Causos do Mestre Graça



Cotovelos fincados na janela, a moça bonita olha na direção da prefeitura. Seriam 11 horas da noite. Calorão por dentro e por fora naquele fim de mundo. Ela não tem sono, por isso fica ali, plantada, a rua deserta se alongando.
– Que diabo estará o prefeito fazendo até agora? – resmunga.

NA PREFEITURA

Graciliano Ramos vira de um trago o copinho de cachaça e estala a língua.
– Veja você, padre. A infeliz vem da capital, olha-me com olhos bambos, mete-me minhocas na cabeça e me deixa assim, atarantado, infeliz, cheio de desejos.
Padre Macedo prova a cachaça.
– Vocês, viúvos, são engraçados. Matam uma mulher de tanto ter filho, enterram a coitada, herdam uma penca de crianças largadas e querem logo arrumar outra.
– Ora, padre. Não fui eu que matei Maria Augusta. Fosse mais resistente. Sucumbir logo no quarto filho? Tenha paciência. É fraqueza demais.

NA JANELA

Heloísa passa o lenço molhado na testa úmida e grita para dentro:
– Creuza! Me vê um suco de caju, que não aguento este calor.
A menina chega correndo, arrastando as chinelinhas.
– Por que não se recolhe, sinhá Heloísa? Nem alma de cachorro na rua. Calor por calor, tanto faz aqui como no quarto.
Heloísa abre um leve sorriso.
– Não é do calor de fora que me queixo, Creuza. É de outro, que você ainda é muito nova para conhecer...
– Vixe! Não vem com mistério não, dona Heloísa.

NA PREFEITURA

Graciliano vira outro copinho de cachaça e estala a língua.
– Vida de padre é diferente, Macedo. Vocês se entopem de brometo, não ligam para fêmeas, assim é fácil.
– Brometo foi só no seminário, Graciliano. Padre que é padre não tem desejo. Somos de outra têmpera. Não fosse assim, nossa vida seria um inferno. Como a sua.</CS>
– Reconheço, padre. Minha vida é um inferno. Durante o dia, qualquer rabo de saia me faz saltarem os olhos. De noite, é rolar na cama horas e horas.
– É por isso, Graciliano, que sou contra o celibato. Muitos padres não conseguem se controlar. E então, o que fazem os infelizes? Acabam se enrabichando com mulher alheia. Ou com solteironas. Dizem que até com crianças.

NA JANELA

– Quantos anos você tem, Creuza? Nove? Dez?
– Já completei 13, sinhá. Sou pequena assim de família. Todos lá em casa são miúdos, até pai e mãe.
– Pois então, Creuza, qualquer dia desses você vai sentir esse calor de que estou falando. Vem lá de dentro, Creuza. Não é esse de fora não, mas esquenta até mais.
– Outro dia senti uma coisa esquisita vinda de dentro, sinhá. Mais de uma vez até. Mas não achei ruim não, sinhá. É até bem gostoso.

NA PREFEITURA

Graciliano vira mais um copinho e estala a língua. Gosta do cacoete. Sente que está levemente bêbado. Solta uma risadinha contida.
– Vidinha miserável, padre. Esta é a minha vida. Ocupando este cargo, não posso, como todo mundo, ir me saciar no Beco da Mariana. Para isso tenho de ir a Maceió. Que pensa você que faço na capital, viajando toda semana? Despachar com o secretário ou com o governador? Não, padre. Descarregar, só descarregar.
– Compreendo, Graciliano – padre Macedo está pensativo. – Então por que não se declara à moça? Você tem sete anos de viuvez. Dentro de mais alguns estará velho. Precisa de alguém para te ajudar a cuidar dos filhos. E ter outros, até.
– E acha que não pensei nisso, padre? Penso noite e dia. Mas, e a coragem?

NA JANELA

Heloísa ri e examina atentamente a negrinha.
– Nem tinha reparado, Creuza, mas você já tem peitinhos. Como é que não reparei nisso? Acho que por ser tão miúda. Mas você é bem bonitinha, Creuza.
– Que isso, sinhá Heloísa – apressa-se a dizer Creuza. – Sou bem feiosinha, isso sim. Mas lá na prefeitura, sabe? Tem um rapazinho que me olha de um jeito... que eu até fico sem jeito.
– Ah, sua safadinha. Então você está melhor do que eu.
Creuza solta uma risada aguda.
– Melhor, eu? Ah, sinhá, melhor nada. Desculpe se falo nisso, mas todo mundo na cidade já reparou e vive comentando da senhora com o prefeito.

NA PREFEITURA

– Não seja por isso, Graciliano – padre Macedo dá mais uma bicadinha na cachaça. – Deixa por minha conta. Se quiser, amanhã mesmo falo com a moça e vou a Maceió conversar com os pais dela. Só depende de você.
– É uma boa ideia, padre. Mas será difícil. Viúvo, prefeito na roça, uma penca de filhotes miúdos, futuro nenhum. Será que ela aceita?
– Deixa comigo. Você não será prefeito a vida toda. E está desperdiçado aqui. Com sua cultura e os textos que escreve, voltará para o Rio de Janeiro, mais dia, menos dia. É só maneirar a língua. Metido em nossa política chinfrim, pode acabar preso. E, casado de novo, deixará Heloísa cheia de filhos alheios e viúva de marido vivo.


( texto de Sebastião Nunes. Site:  http://www.otempo.com.br)

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